O Superior Tribunal de Justiça (STJ) marcou um divisor de águas no debate jurídico e social sobre o cânhamo industrial (Hemp) com o julgamento do Incidente de Assunção de Competência (IAC) nº 16. A controvérsia, de notório impacto para a indústria farmacêutica e o setor da saúde, versou sobre a possibilidade de autorização sanitária para importação de sementes, cultivo e comercialização do cânhamo industrial — uma variedade da Cannabis sativa L. com alto teor de canabidiol (CBD) e baixo teor de tetrahidrocanabinol (THC).
A controvérsia levada ao STJ com o IAC 16
O caso nasceu de uma demanda proposta pela DNA Soluções em Biotecnologia EIRELI contra a União e a ANVISA. A empresa buscava autorização para cultivar o cânhamo industrial e comercializar seus derivados, destinados prioritariamente à indústria farmacêutica e ao setor da saúde, sobretudo diante da ausência de regulamentação específica da matéria em território nacional.
A resistência da ANVISA e da União se ancorava na Portaria SVS/MS n. 344/1998 e na RDC n. 327/2019, que, genericamente, proíbem o cultivo e a comercialização de qualquer variedade de Cannabis sativa, independentemente do teor de THC. A agência reguladora, inclusive, não distingue normativamente o cânhamo da maconha, embora ambas possuam diferenças bioquímicas relevantes.
A importância da diferenciação científica
A Ministra Relatora Regina Helena Costa destacou, em seu voto, que o cânhamo industrial não possui concentração de THC suficiente para gerar efeitos psicotrópicos (inferior a 0,3%), sendo, portanto, inapto para a produção de drogas ilícitas. Trata-se de uma variedade rica em CBD, que já possui uso comprovado em tratamentos de doenças neurológicas, dores crônicas e outras enfermidades.
“Diferentemente da maconha, o cânhamo industrial não possui concentração de THC capaz de causar efeitos psicotrópicos (inferior a 0,3%), vale dizer, é inservível para produzir drogas, mas possui alto teor de CBD” — enfatizou a MinistraIAC 16.
As teses fixadas pelo STJ no IAC 16
O STJ consolidou cinco importantes teses vinculantes para nortear casos semelhantes e uniformizar o entendimento nos tribunais do país:
O cânhamo industrial com THC inferior a 0,3% não é proscrito pela Lei de Drogas (Lei n. 11.343/2006), por ser inapto à produção de substâncias psicoativas.
A regulação do cânhamo compete ao Estado brasileiro, que, até o momento, não possui norma específica que permita seu uso industrial desvinculado de finalidades medicinais e farmacêuticas.
A Portaria SVS/MS n. 344/1998 e a RDC n. 327/2019 devem ser interpretadas restritivamente, de modo a não alcançarem o cânhamo com baixo teor de THC.
É lícita a concessão de autorização sanitária para o cultivo e comercialização do cânhamo industrial para fins exclusivamente medicinais e farmacêuticos, desde que sob regulamentação específica da ANVISA e da União.
Cabe à ANVISA e à União estabelecer diretrizes de segurança e controle para impedir o desvio ou uso indevido da planta, considerando mecanismos como rastreabilidade genética e controle de áreas de plantio.
O impacto da decisão do IAC 16: segurança jurídica e estímulo ao mercado farmacêutico
A decisão do STJ soluciona um impasse de décadas e cria um novo cenário para a indústria nacional de medicamentos à base de Cannabis. O Brasil, até então, dependente da importação de insumos para fabricação de fármacos com CBD, poderá estruturar uma cadeia produtiva interna com potencial de redução significativa dos custos dos medicamentos.
Como destacado pela relatora, a ausência de uma política regulatória para o cânhamo afetava diretamente o direito à saúde dos pacientes, impondo-lhes custos elevados:
“Há inércia regulamentar do Poder Público nacional sobre o cultivo e comercialização da Cannabis no País, o que impacta negativamente o acesso a tratamento qualificado de saúde para inúmeros pacientes” — apontou a MinistraIAC 16.
A doutrina e o princípio da legalidade
Do ponto de vista doutrinário, a decisão dialoga diretamente com a clássica lição de Celso Antônio Bandeira de Mello sobre o limite do poder regulamentar da Administração Pública. O STJ aplicou a chamada redução teleológica ao alcance da Lei de Drogas, afastando a interpretação ampliativa adotada pela ANVISA.
A jurisprudência demonstra que o regulamento administrativo deve seguir fielmente a lei que complementa, não podendo inovar na ordem jurídica ou restringir direitos sem amparo legal. Como ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “o regulamento não pode contrariar ou extrapolar o conteúdo da lei sob pena de invalidade” (DI PIETRO, Direito Administrativo, 2022).
O cenário internacional e a tendência global
O STJ também ressaltou que o Brasil, ao aderir às convenções da ONU (1961, 1971 e 1988), não assumiu compromisso internacional que proíba o cultivo do cânhamo industrial. Ao contrário, vários países signatários já regulamentaram sua produção, como Canadá, Estados Unidos e membros da União Europeia.
Ademais, a Organização das Nações Unidas (ONU) tem incentivado reformas regulatórias para o uso industrial do cânhamo, sem que isso contrarie os pactos internacionais assinados pelo Brasil.
O papel do Judiciário e a proteção de direitos fundamentais
O julgamento do IAC 16 reforça o protagonismo do Judiciário na concretização de direitos fundamentais. O STJ, alinhado ao Supremo Tribunal Federal, reafirmou que o Judiciário pode determinar medidas administrativas necessárias para assegurar direitos essenciais, como o direito à saúde (art. 6º e 196 da Constituição Federal).
Esse entendimento está em sintonia com a jurisprudência consolidada no Tema 698 da Repercussão Geral do STF, que permite a atuação judicial excepcional para garantir prestações positivas do Estado em políticas públicas.
Conclusão: um marco na regulação do cânhamo no Brasil
O IAC 16 do STJ representa um avanço relevante para o setor de saúde, a indústria farmacêutica e a sociedade em geral. Ao reconhecer que o cânhamo industrial não se enquadra no conceito legal de “droga”, o STJ abriu caminho para o cultivo controlado dessa variedade de Cannabis no Brasil, beneficiando pacientes e fomentando a economia nacional.
Com a fixação das teses vinculantes, cria-se um novo ambiente jurídico favorável ao desenvolvimento de uma cadeia produtiva regulamentada e segura, alinhada aos parâmetros internacionais e ao direito fundamental à saúde.
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