A proteção da mulher no centro da discussão jurisprudencial
No julgamento do Tema 1249 dos recursos repetitivos, o Superior Tribunal de Justiça enfrentou questão de alta relevância prática: qual a natureza jurídica das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006) e quais os seus limites temporais. A controvérsia exigia resposta uniforme, diante da multiplicidade de recursos envolvendo a fixação ou não de prazo de vigência para tais medidas.
O contexto fático e a definição da controvérsia do Tema 1249
A divergência jurisprudencial girava em torno da possibilidade de se estabelecer prazo determinado para a eficácia das medidas protetivas de urgência. Alguns tribunais vinham determinando a extinção automática da medida com o decurso de prazo, enquanto outros sustentavam a necessidade de reavaliação da situação de risco para a mulher.
O STJ, ao julgar os Recursos Especiais n. 1.070.857/MG, 1.070.863/MG, 1.071.109/MG e 1.070.717/MG, todos sob relatoria do Ministro Joel Ilan Paciornik, com voto-condutor do Ministro Rogério Schietti Cruz, fixou tese para pôr fim à controvérsia.
A tese firmada pelo STJ no Tema 1249
“I – As medidas protetivas de urgência (MPUs) têm natureza jurídica de tutela inibitória e sua vigência não se subordina à existência (atual ou vindoura) de boletim de ocorrência, inquérito policial, processo cível ou criminal.
II – A duração das MPUs vincula-se à persistência da situação de risco à mulher, razão pela qual devem ser fixadas por prazo temporalmente indeterminado;
III – Eventual reconhecimento de causa de extinção de punibilidade, arquivamento do inquérito policial ou absolvição do acusado não origina, necessariamente, a extinção da medida protetiva de urgência, máxime pela possibilidade de persistência da situação de risco ensejadora da concessão da medida.
IV – Não se submetem a prazo obrigatório de revisão periódica, mas devem ser reavaliadas pelo magistrado, de ofício ou a pedido do interessado, quando constatado concretamente o esvaziamento da situação de risco. A revogação deve sempre ser precedida de contraditório, com as oitivas da vítima e do suposto agressor. Em caso de extinção da medida, a ofendida deve ser comunicada, nos termos do art. 21 da Lei n. 11.340/2006.
O acórdão paradigma traz a seguinte ementa:
“RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. RITO DOS RECURSOS REPETITIVOS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. TEMA N. 1249. MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA. NATUREZA JURÍDICA. TUTELA INIBITÓRIA. CONTEÚDO SATISFATIVO. VIGÊNCIA DA MEDIDA NÃO SE SUBORDINA À EXISTÊNCIA DE BOLETIM DE OCORRÊNCIA, INQUÉRITO POLICIAL, PROCESSO CÍVEL OU CRIMINAL. IMPOSSIBILIDADE DE FIXAÇÃO DE PRAZO PREDETERMINADO. DURAÇÃO SUBORDINADA À PERSISTÊNCIA DA SITUAÇÃO DE RISCO. RECURSO PROVIDO.”【51:0†1249.1.pdf】
Trechos relevantes do voto do Ministro Schietti
O voto do Ministro Rogério Schietti asseverou que:
“A Lei Maria da Penha foi fruto de uma longa e custosa luta de setores da sociedade civil para que o Estado brasileiro oferecesse às mulheres um conjunto de mecanismos capaz de assegurar a elas, em situações de violência doméstica, efetiva proteção e assistência.”
E ainda destacou:
“Não se pode exigir da vítima que aguarde a instauração de inquérito policial ou o oferecimento de denúncia para, só então, ter acesso às medidas protetivas.”
O entendimento firmado foi no sentido de que tais medidas não podem ter prazo predefinido de validade. Sua duração deve estar atrelada exclusivamente à persistência da situação de risco à vítima, devendo o juiz reavaliar a medida quando provocado, mas nunca presumir a cessação do risco por decurso de tempo.
Fundamentação doutrinária: tutela inibitória e medidas cautelares à luz do Direito Penal
A doutrina penal reforça a importância da prevenção eficaz na proteção de bens jurídicos. Segundo Cezar Roberto Bitencourt:
“A prevenção é, em verdade, a razão de ser do Direito Penal moderno, que não pode limitar-se à repressão, mas deve atuar como mecanismo de proteção eficaz dos bens jurídicos mais relevantes.” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, Parte Geral, vol. 1, 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2020).
Aplicando-se esse raciocínio, entende-se que as medidas protetivas, ao visarem impedir a reiteração da conduta criminosa, cumprem função inibitória de proteção à integridade física e psicológica da vítima — bem jurídico penalmente tutelado.
Complementa Nucci:
“As medidas de proteção previstas na Lei Maria da Penha não têm natureza meramente processual. Elas atuam como instrumentos penais preventivos autônomos, justificando-se pela tutela de bens jurídicos indisponíveis.” (NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024).
Dessa forma, fica evidente que o caráter penal das medidas protetivas ultrapassa a lógica das medidas cautelares ou pré-processuais. Trata-se de uma proteção direta e imediata à vítima, que não depende da formalização de persecução penal.
A crítica ao entendimento vencido
O relator original, Ministro Joel Ilan Paciornik, chegou a propor a tese de que as medidas protetivas seriam pré-cautelares, afirmando:
“Em um primeiro momento, importa tão somente coibir a prática ou a continuidade da prática delitiva de maneira célere e efetiva, para, apenas depois, verificar se é caso de mantê-la.”
Todavia, o voto vencedor rebateu essa interpretação, argumentando que a inexistência de inquérito ou ação penal não inviabiliza a permanência da situação de risco à mulher, que é o critério balizador para manutenção da medida.
Aplicações práticas e repercussão nos tribunais
A tese fixada pelo STJ tem aplicação imediata nos juízos de primeiro grau e tribunais estaduais. Implica dizer que medidas protetivas não devem ser automaticamente extintas por decurso de tempo. Havendo risco persistente, a medida deve perdurar.
Além disso, o entendimento fortalece a centralidade da vítima no processo penal e reconhece a natureza sui generis da Lei Maria da Penha como microssistema de tutela de direitos fundamentais das mulheres.
Considerações finais
O Tema 1249 do STJ consolidou entendimento jurisprudencial fundamental para a proteção das mulheres. Ao afirmar que as medidas protetivas possuem natureza de tutela inibitória com conteúdo satisfativo, rompeu com interpretações redutoras e formalistas. É um passo decisivo na efetivação da dignidade da pessoa humana e no combate à violência de gênero.
Para mais informações sobre o julgado, acesse aqui.
Veja também o entendimento firmado pelo STJ no Tema 1215 – não configuração do bis in idem nos crimes contra a dignidade sexual a aplicação simultânea da agravante genérica do art. 61, II, “f”, e da majorante específica do art. 226, II, ambos do Código Penal.
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