Studio Ghibli, IA e Direito Autoral

Studio Ghibli, IA, inteligência artificial

📸 Foto: “Studio Ghibli” por sakuraichirouta, disponível em Flickr, sob licença CC BY 2.0.

A nova era da criatividade digital trouxe filtros encantadores. Mas também reacendeu antigos conflitos jurídicos.

Introdução

No feed das redes sociais, milhares de pessoas estão compartilhando imagens com estética inspirada nos filmes do Studio Ghibli, criadas por inteligência artificial generativa. A tendência, embora visualmente deslumbrante, acende um alerta jurídico: quem detém os direitos sobre essas criações? O usuário que enviou a foto? A IA que aplicou o filtro? Ou os artistas cujas obras inspiraram o estilo?

O dilema é mais profundo do que parece. A Lei nº 9.610/98, que rege os direitos autorais no Brasil, reconhece como autor a pessoa física criadora da obra. Contudo, ao utilizarmos IA generativa, não há uma criação humana direta. A imagem final é resultado de uma combinação algorítmica — muitas vezes treinada com base em obras protegidas, como é o caso do estilo Ghibli. Estamos, então, diante de uma possível apropriação indevida de linguagem artística?

Direitos Autorais e a Justiça

Decisões judiciais recentes têm enfrentado questões semelhantes. No julgamento da ApCiv 1003475-69.2021.8.26.0053 (TJSP), o Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu o direito de autor sobre uma ilustração reproduzida por algoritmo de forma não autorizada, reforçando a aplicação do art. 29 da Lei de Direitos Autorais, que proíbe a reprodução parcial ou total sem autorização. Essa jurisprudência mostra que o simples uso de IA não exime o usuário ou o desenvolvedor de responsabilidade legal.

No julgamento da Apelação Cível nº 1003475-69.2021.8.26.0053, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) analisou um caso de reprodução não autorizada de ilustração por meio digital, e os fundamentos jurídicos centrais foram os seguintes:

 Fundamentos Jurídicos Destacados no Acórdão:

  1. Violação ao direito autoral (Lei 9.610/98, art. 29)
    O tribunal reconheceu que a reprodução de obra artística — mesmo em meio digital — sem autorização do autor, configura violação ao direito patrimonial do autor. A decisão reforça que a reprodução parcial ou total, por qualquer meio, exige consentimento expresso do titular da obra.

  2. Proteção da obra intelectual como bem jurídico autônomo (art. 7º da LDA)
    A ilustração foi reconhecida como obra protegida, independentemente de registro, conforme o art. 7º da Lei de Direitos Autorais. A originalidade e a autoria foram suficientes para garantir a proteção legal.

  3. Responsabilidade objetiva do infrator (art. 927 do Código Civil)
    A decisão aplicou o princípio da responsabilidade civil objetiva, considerando que a simples utilização indevida da obra gera o dever de indenizar, independentemente de dolo ou culpa.

  4. Dano moral presumido
    O TJSP entendeu que a violação ao direito autoral, por si só, gera dano moral presumido, dada a natureza personalíssima do direito à autoria e à integridade da obra.

  5. Fixação de indenização por danos materiais e morais
    A indenização foi fixada com base na extensão da violação, levando em conta a repercussão da obra e o uso comercial indevido.

Esse julgamento pode ser paradigmático para casos que envolvem uso de obras protegidas por algoritmos, IA ou plataformas digitais, pois reforça que a tecnologia não exime a responsabilidade civil nem afasta a aplicação da legislação autoral.
 

Além disso, o uso de imagens pessoais como input para gerar novas obras pode violar o direito à imagem, protegido pelo art. 5º, inciso X, da Constituição Federal. Se a plataforma que processa sua imagem não fornece consentimento informado, finalidades claras e garantia de não comercialização, o usuário pode ser vítima de um uso indevido de seus dados visuais, com implicações civis e até penais.

Direito sobre o Estilo Autoral do Studio Ghibli

A discussão ganha contornos ainda mais sensíveis quando se observa que a estética Ghibli é baseada em obras autorais de Hayao Miyazaki e do Studio Ghibli — protegidas por direitos patrimoniais e morais. Segundo o art. 24 da Lei 9.610/98, mesmo que o nome do autor não esteja diretamente envolvido, a apropriação de seu estilo pode ser considerada violação moral, sobretudo se o uso for distorcido ou depreciativo.

O que diz a Convenção de Berna sobre o caso Studio Ghibli e IA?

Proteção automática e sem formalidades

Artigo 5º, §2º:

“A proteção independe de qualquer formalidade; o gozo e o exercício desses direitos não se subordinarão a nenhuma formalidade.”

👉 Isso significa que as obras visuais e o estilo gráfico do Studio Ghibli estão protegidos internacionalmente, mesmo sem registro em cada país. O mero fato de serem originais e criadas por autores vinculados a um país signatário (como o Japão) garante proteção automática no Brasil.

Direito exclusivo de reprodução

Artigo 9º, §1º:

“Os autores das obras literárias e artísticas protegidas pela presente Convenção gozam do direito exclusivo de autorizar a reprodução de suas obras, por qualquer modo ou processo.”

🔎 Ao utilizar IA treinada com imagens do Ghibli (frames, artes, ilustrações), há forte indício de que essas reproduções foram feitas sem autorização expressa, configurando violação ao direito exclusivo de reprodução do autor original.

Proibição da adaptação não autorizada

Artigo 12:

“Os autores gozam do direito exclusivo de autorizar adaptações, arranjos e outras transformações de suas obras.”

📌 A IA que simula o estilo Ghibli (cores, traços, ambientações) não está apenas reproduzindo: está adaptando o estilo original para novos contextos (rostos de usuários, por exemplo). Isso se enquadra como transformação de obra protegida, o que só pode ser feito com autorização legal dos titulares.

Direitos morais do autor

Artigo 6º-bis:

“Mesmo após a cessão dos direitos patrimoniais, o autor conserva o direito de reivindicar a paternidade da obra e de se opor a qualquer deformação, mutilação ou outra modificação que possa prejudicar sua honra ou reputação.”

✒️ Mesmo que não haja prejuízo econômico direto, a replicação indevida do estilo Ghibli pode ser entendida como distorção da obra original, especialmente se utilizada em contextos ofensivos, banais ou comerciais, afetando a reputação de Hayao Miyazaki e do estúdio.

Aplicação prática no Brasil

A Convenção de Berna tem status supralegal no Brasil (STF – RE 466.343/SP), ou seja, está acima das leis ordinárias, inclusive da Lei de Direitos Autorais brasileira. Isso significa que, mesmo que a legislação nacional seja omissa sobre IA, a proteção internacional se aplica.

Assim, no contexto da IA generativa:

  • Se a IA foi treinada com base em obras do Ghibli, há risco de violação à Convenção de Berna, arts. 9 e 12;

  • Se a obra gerada com IA prejudica a integridade da estética ou imagem dos autores, pode haver violação ao art. 6º-bis (direito moral);

  • O usuário e o desenvolvedor podem ser responsabilizados, inclusive internacionalmente, por uso indevido.

 Em resumo: embora a tecnologia avance em ritmo acelerado, o Direito ainda é o freio necessário para proteger a autoria, a imagem e os valores culturais originais. Ignorar isso pode transformar uma simples brincadeira com IA em um passivo jurídico considerável.

🛡️ Fundamentos Jurídicos Defensivos para o Usuário de IA

1. Uso pessoal, sem finalidade comercial

Fundamento: art. 46, VIII, da Lei 9.610/98 (LDA)

“Não constitui ofensa aos direitos autorais: a reprodução, na imprensa diária ou periódica, de obras […] para uso exclusivo de deficientes visuais ou de caráter didático ou informativo, sem intuito de lucro.”

📌 Aplicação: se o uso da imagem com filtro Ghibli for meramente pessoal, não comercial, pode ser invocado o argumento de uso justo (fair use à brasileira), mesmo que de forma limitada. Ainda que o Brasil não adote o “fair use” americano, há espaço interpretativo para usos inocentes e sem exploração econômica.

2. Ausência de intenção de violação ou má-fé

Fundamento: Art. 186 do Código Civil

“Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, comete ato ilícito.”

📌 Aplicação: a configuração de ilícito exige intenção ou negligência. Usuários que utilizam ferramentas públicas e acessíveis, sem conhecimento de uso indevido de bases de dados, podem alegar boa-fé objetiva, afastando o elemento subjetivo essencial à responsabilidade civil.

3. Ausência de uso direto da obra protegida

Fundamento: Art. 7º e 29 da LDA

📌 Aplicação: em muitos casos, o usuário não fez upload de imagem do Ghibli nem copiou partes protegidas, apenas utilizou uma ferramenta que simula um estilo. Isso pode ser interpretado como uma obra derivada transformada por tecnologia, especialmente se não houver reprodução literal de personagens, cenários ou trilhas originais.

4. Responsabilidade do desenvolvedor da IA

Fundamento: Art. 927 do Código Civil + CDC (art. 12)

📌 Aplicação: a responsabilidade pelo treinamento com base em obras protegidas pode recair sobre o desenvolvedor da ferramenta, especialmente se o usuário for leigo e não souber como o modelo foi treinado. Há decisões no STJ e TJSP que transferem a responsabilidade para quem oferece a tecnologia e lucra com ela.

5. Falta de comprovação de dano efetivo

Fundamento: Art. 944 do Código Civil

“A indenização mede-se pela extensão do dano.”

📌 Aplicação: ainda que se entenda pela existência de uso indevido, não havendo prejuízo financeiro ou desvalorização da obra, pode-se alegar ausência de dano mensurável. Isso reduz ou até afasta o dever de indenizar.

📌 Resumo prático:

Quem utiliza IA generativa pode invocar boa-fé, ausência de finalidade comercial, inexistência de reprodução direta, e até mesmo delegar a responsabilidade ao desenvolvedor. Esses fundamentos são especialmente válidos quando o usuário comum utiliza ferramentas públicas, sem intenção de explorar economicamente a obra de terceiros.

💬 E agora queremos ouvir você!

Você acredita que o uso de filtros de IA no estilo Ghibli configura violação de direitos autorais? O que pensa sobre a responsabilidade do usuário nesse processo? E quanto à proteção da sua própria imagem nesse novo cenário digital?

🧠 Deixe sua opinião nos comentários!
Sua visão pode enriquecer ainda mais esse debate que está só começando.

Leia também o sobre o Projeto de Lei Larissa Manoela.

 

Deixe um comentário