Introdução
O transporte rodoviário de cargas é essencial para o escoamento da produção e abastecimento no Brasil. Contudo, o uso indevido da infraestrutura pública por meio do tráfego de veículos com excesso de peso tem sido recorrente e tem gerado debates não apenas na esfera administrativa, mas também no âmbito da responsabilidade civil.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o Tema 1104 dos recursos repetitivos, pacificou o entendimento de que o transporte reiterado de cargas com excesso de peso configura violação direta ao direito difuso à segurança viária, sendo cabível a responsabilização civil do agente infrator, além da imposição de tutela inibitória, mesmo quando já houve aplicação de penalidades administrativas.
Neste artigo, destrinchamos o entendimento firmado pela Corte, analisamos os principais pontos das decisões e dialogamos com a doutrina contemporânea, trazendo um conteúdo essencial para profissionais do Direito e operadores logísticos.
O Caso Concreto e a Tese Firmada pelo STJ no Tema 1104
A Primeira Seção do STJ, ao julgar os Recursos Especiais n.º 1.913.392/MG e 1.908.497/RN, consolidou a seguinte tese repetitiva:
“O direito ao trânsito seguro, bem como os notórios e inequívocos danos materiais e morais coletivos decorrentes do tráfego reiterado, em rodovias, de veículo com excesso de peso, autorizam a imposição de tutela inibitória e a responsabilização civil do agente infrator.”
Essa posição surgiu em face de Ações Civis Públicas ajuizadas pelo Ministério Público Federal contra transportadoras que, de forma recorrente, faziam circular veículos com carga acima do permitido pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB). A principal linha de defesa das empresas era a de que a infração já estaria devidamente sancionada administrativamente pelo CTB, afastando a possibilidade de sanções civis complementares.
O STJ, contudo, afastou essa tese, firmando que a sanção administrativa não exaure a atuação estatal diante da violação de direitos difusos e coletivos. O Ministro Relator Teodoro Silva Santos destacou, com base em dados da OMS e da ONU, a segurança viária como questão de saúde pública e vinculada a compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 (ODS 3.6).
Pontos-Chave da Decisão no Tema 1104
1. Danos Materiais e Morais Coletivos In Re Ipsa
O STJ enfatizou que o dano decorre diretamente da conduta ilícita, não sendo necessária a produção de prova específica. O excesso de peso nos veículos compromete a durabilidade da malha viária e a segurança dos usuários das rodovias, configurando dano in re ipsa tanto ao patrimônio público quanto ao meio ambiente e à ordem econômica.
2. Tutela Inibitória e Astreintes
Outro ponto crucial foi a afirmação de que a tutela inibitória prevista na Lei da Ação Civil Pública pode ser aplicada independentemente da multa administrativa do CTB. Segundo o Relator, “a multa administrativa, de caráter sancionador, em nada se confunde com a multa civil (astreintes), que visa compelir ao cumprimento de obrigações de fazer ou não fazer”.
3. Inexistência de Bis In Idem
O Tribunal afastou o argumento de bis in idem, ressaltando que há independência das instâncias administrativa e judicial, o que permite a cumulação das sanções administrativas com a responsabilização civil. A jurisprudência reafirma que “a sanção administrativa não exclui a tutela jurisdicional destinada à proteção de bens jurídicos difusos, como a segurança viária”.
4. Reincidência como Elemento Relevante
Embora tenha reconhecido a possibilidade de tutela inibitória e reparação civil, o STJ destacou que a reincidência na conduta ilícita é relevante para a caracterização da responsabilidade civil. No caso concreto, a Corte entendeu que quatro autuações em quatro anos não configurariam reincidência suficiente para condenação, mas isso não afasta a tese geral firmada.
A Doutrina e a Responsabilidade Civil Ambiental e Coletiva
Conforme leciona Caio Mário da Silva Pereira, a responsabilidade civil contemporânea afasta a visão centrada no agente e prioriza a tutela da vítima e da coletividade, sobretudo quando há interesse difuso em jogo.
A doutrina moderna, como sustentada por Gustavo Tepedino, também pontua que em situações de dano difuso, como no caso do uso inadequado da malha viária, a presunção do dano e a objetividade da responsabilidade devem prevalecer, exatamente como sinalizou o STJ.
Além disso, autores como Arnaldo Rizzardo enfatizam que o direito ao trânsito seguro, previsto no art. 1º, § 2º do CTB, integra o núcleo dos direitos fundamentais de terceira geração, justificando a atuação do Poder Judiciário para proteção desses bens jurídicos.
Impactos Práticos e Estratégicos para Empresas de Transporte
O precedente do Tema 1.104 cria uma alerta relevante para transportadoras e operadores logísticos. A repetição do transporte com excesso de peso poderá ensejar não apenas multas administrativas, mas também ações civis públicas com pedidos de danos morais coletivos e materiais.
Além disso, o risco da fixação de astreintes e de medidas inibitórias judiciais pode representar um passivo adicional para empresas reincidentes, que não adotem medidas efetivas de compliance e controle logístico.
Conclusão
O STJ, ao julgar o Tema 1104, fortaleceu a proteção ao direito ao trânsito seguro e reforçou o papel do Poder Judiciário na tutela de interesses coletivos. O acórdão deixa claro que a conduta ilícita de tráfego com excesso de peso viola a segurança pública, o meio ambiente e o patrimônio público, gerando repercussões tanto na esfera administrativa quanto na esfera civil.
Trata-se de um precedente importante que deverá impactar diretamente as relações entre órgãos de fiscalização, Ministério Público e o setor de transporte de cargas.
Para mais informações sobre o julgado, acesse aqui.
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