Introdução
No cenário jurídico contemporâneo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem desempenhado papel central na uniformização da jurisprudência penal, especialmente em temas sensíveis e com alta repercussão social, como os crimes contra a dignidade sexual. O Tema 1215 dos recursos repetitivos do STJ é um marco nesse sentido, pois define uma controvérsia recorrente na dosimetria penal: é possível aplicar, de maneira cumulativa, a agravante prevista no art. 61, II, “f” e a majorante do art. 226, II, ambos do Código Penal, sem incorrer na vedação ao bis in idem?
Neste artigo, vamos destrinchar a decisão da Terceira Seção do STJ, trazer trechos relevantes do julgamento, confrontar com a doutrina penal moderna e explorar as consequências práticas dessa tese para a advocacia criminal e para o Ministério Público.
O Caso e a Fixação da Tese no Tema 1215
O Recurso Especial 2.049.969/DF, relatado pelo Ministro Joel Ilan Paciornik, traz à tona uma discussão crucial sobre a dosimetria da pena em crimes sexuais, especialmente no contexto de relações familiares e domésticas. No caso concreto, o Tribunal de origem havia afastado a agravante do art. 61, II, “f”, do CP, por entender que sua aplicação em conjunto com a majorante do art. 226, II, caracterizaria bis in idem, uma vez que ambas estariam relacionadas ao vínculo de parentesco e à autoridade exercida pelo agente sobre a vítima.
O STJ, no entanto, fixou a tese de que:
“nos crimes contra a dignidade sexual, não configura bis in idem a aplicação simultânea da agravante genérica do art. 61, II, “f”, e da majorante específica do art. 226, II, ambos do Código Penal, salvo quando presente apenas a relação de autoridade do agente sobre a vítima, hipótese na qual deve ser aplicada tão somente a causa de aumento.”
Trecho-chave da decisão:
Se o agente, além de possuir relação de autoridade sobre a vítima, praticar o crime em alguma das situações previstas no art. 61, II, ‘f’, do CP (relações domésticas, coabitação, hospitalidade ou violência contra a mulher), deve ser aplicada a agravante em conjunto com a majorante do art. 226, II, do CP. Não há, nesses casos, dupla valoração do mesmo fato.
A Estrutura Jurídica da Tese no Tema 1215: Agravante e Majorante em Foco
A decisão do STJ busca delimitar os campos de incidência de cada dispositivo:
Art. 61, II, “f” do CP: agrava a pena quando o crime é cometido com abuso de autoridade, prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou hospitalidade, ou com violência contra a mulher (nos termos da Lei Maria da Penha).
Art. 226, II do CP: prevê a majoração de metade da pena em crimes contra a dignidade sexual cometidos por agente que detém autoridade sobre a vítima (padrasto, tio, ascendente etc.).
O único ponto de intersecção entre os dois dispositivos é a relação de autoridade, o que poderia sugerir uma sobreposição e configurar o bis in idem. Porém, o STJ esclareceu que as outras circunstâncias previstas no art. 61, II, “f” são autônomas e independentes dessa relação hierárquica.
Jurisprudência: Uniformização da Terceira Seção
A tese reafirma precedentes anteriores da Quinta e Sexta Turmas do STJ. Veja o que destacou o Ministro Joel Ilan Paciornik ao citar julgados:
Não se confunde a partilha de uma mesma vida familiar ou a coabitação com o parentesco ou a autoridade sobre a vítima. São circunstâncias distintas. (HC 353.500/SP e HC 336.120/PR)
Essa compreensão tem impactos diretos na dosimetria da pena, podendo elevar significativamente a reprimenda aplicada nos casos em que o agente se aproveita, por exemplo, de uma relação doméstica e, simultaneamente, exerce autoridade formal sobre a vítima.
A Visão Doutrinária
Luiz Regis Prado
Segundo Prado, o art. 226, II, do CP objetiva punir a violação do dever especial de proteção que o agente deve ter em virtude da posição de autoridade, como no caso de pais, padrastos ou empregadores. Já o art. 61, II, “f” tutela situações em que há um abuso específico do ambiente ou vínculo de confiança, como a coabitação ou hospitalidade, mesmo sem autoridade formal. Prado reforça a tese do STJ ao afirmar:
Quando coexistem relações de autoridade e situações de coabitação ou domésticas, é legítima a valoração autônoma dessas circunstâncias.
Guilherme de Souza Nucci
Nucci também aponta que a agravante do art. 61, II, “f” visa tutelar o dever de solidariedade e confiança existente em ambientes domésticos e de hospitalidade, sendo autônoma em relação à condição de autoridade formal. Nesse contexto, sua aplicação cumulativa com a majorante do art. 226, II não fere o princípio do ne bis in idem, salvo se baseadas na mesma situação fática.
Impactos Práticos da Decisão
Para o Ministério Público
O entendimento fortalece as teses acusatórias em crimes sexuais praticados em ambientes familiares, permitindo a maximização da pena nos casos em que o réu, além de ser autoridade, abusa da confiança doméstica.
Para a Defesa Criminal
A defesa deverá buscar demonstrar a inexistência de situações autônomas (ex.: ausência de coabitação ou vínculo de hospitalidade) para afastar a agravante e limitar a majoração à regra do art. 226, II.
Para a Magistratura
A decisão uniformiza a jurisprudência e traz clareza à dosimetria, evitando anulabilidades por eventual bis in idem, ao exigir que o julgador fundamente concretamente o acúmulo das duas hipóteses legais com base em fatos distintos.
Tese Repetitiva do STJ (Tema 1215) Resumida
Nos crimes contra a dignidade sexual, não configura bis in idem a aplicação simultânea da agravante genérica do art. 61, II, ‘f’, e da majorante específica do art. 226, II, ambos do Código Penal, salvo quando presente apenas a relação de autoridade do agente sobre a vítima.
Considerações Finais
A decisão do STJ no Tema 1215 fortalece a coerência na aplicação das normas penais em um campo de alta sensibilidade social e jurídica: a repressão aos crimes contra a dignidade sexual no seio familiar. Ao modular a aplicação da agravante e da majorante de forma a evitar a dupla valoração de uma mesma circunstância, o Tribunal harmoniza os princípios da legalidade, da proporcionalidade e da proteção integral da vítima.
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