No contexto da execução de título extrajudicial, uma discussão que há tempos reverbera entre os operadores do Direito é a impenhorabilidade da pequena propriedade rural e a distribuição do ônus da prova sobre sua exploração familiar. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do Tema 1234 sob o rito dos recursos repetitivos, decidiu uma das mais relevantes e controversas questões do Direito Processual Civil contemporâneo: a quem compete demonstrar que a pequena propriedade rural é explorada pela família — devedor ou credor?
Mas o que está por trás dessa decisão? O que mudou no cenário jurisprudencial e como a doutrina tem interpretado essa virada de chave?
A tese fixada: uma virada de paradigma
Em decisão unânime, a Corte Especial do STJ fixou a tese de que “é ônus do executado provar que a pequena propriedade rural é explorada pela família para fins de reconhecimento de sua impenhorabilidade”. O entendimento pacificou uma celeuma que dividia as Turmas da Segunda Seção do tribunal.
No REsp nº 2.091.805/GO, relatado pela Ministra Nancy Andrighi, ficou claro que a proteção conferida pelo art. 833, VIII, do CPC — que garante a impenhorabilidade da pequena propriedade rural trabalhada pela família — somente se aplica quando o devedor comprova, de forma inequívoca, a exploração direta e familiar do bem.
O acórdão destaca que “isentar o executado de comprovar o cumprimento desse requisito legal e transferir a prova negativa ao credor (exequente) importaria em desconsiderar o propósito que orientou a criação da norma”.
Além disso, a decisão se alinha ao entendimento anteriormente consolidado no Tema 961 do Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu a impenhorabilidade de pequenas propriedades rurais com até quatro módulos fiscais, desde que exploradas pela família.
O caso concreto: análise dos precedentes
Nos dois casos paradigmáticos que formaram o núcleo do Tema 1234 — o REsp nº 2.091.805/GO e o REsp nº 2.080.023/MG — o STJ enfrentou situações onde os devedores, embora comprovassem que suas propriedades estavam dentro do limite de quatro módulos fiscais, não apresentaram provas de que suas famílias realizavam a exploração direta da terra.
Na decisão do caso de Goiás, a Corte reformou o acórdão do TJGO, que havia atribuído ao credor o ônus de comprovar a não exploração familiar da terra, para restabelecer a decisão de primeiro grau que mantinha a penhora do imóvel. A relatora enfatizou que “ninguém melhor do que o próprio devedor para saber quais atividades rurícolas são desenvolvidas no local”.
O mesmo raciocínio foi aplicado no caso mineiro (REsp nº 2.080.023/MG), em que o tribunal de origem havia afastado a penhora com base em uma inversão do ônus da prova. Em ambas as hipóteses, a Corte Especial reforçou que o art. 373, II, do CPC impõe ao réu (executado) o encargo de demonstrar o fato impeditivo à penhora.
O olhar da doutrina: entre o direito à moradia e a garantia do crédito
A doutrina majoritária já vinha se posicionando de forma cautelosa quanto ao paralelismo entre a impenhorabilidade do bem de família e a proteção conferida à pequena propriedade rural.
Nas palavras de Paulo Bonavides, “a pequena propriedade rural visa assegurar o direito fundamental de acesso aos meios de produção e subsistência”1234.2. Essa interpretação, todavia, não eliminava a controvérsia sobre quem deveria apresentar as provas no processo executivo.
Autores como Ricardo Canan (2013) destacam que a finalidade histórica da norma, desde o CPC de 1939, era garantir a subsistência do agricultor familiar, e não apenas proteger um imóvel enquanto patrimônio, como ocorre com o bem de família urbano. Canan ressalta: “a impenhorabilidade rural não tem como núcleo a moradia, mas a função produtiva e a subsistência”.
Esse diferencial foi absorvido pelo voto da Ministra Nancy Andrighi, ao afirmar que “a experiência demonstra que uma quantidade significativa de pequenas propriedades é destinada a lazer ou a atividades comerciais dissociadas da subsistência da família”.
A uniformização e seus efeitos práticos
A decisão do STJ trouxe uniformidade e segurança jurídica não apenas para credores e devedores, mas para toda a comunidade jurídica. A fixação da tese sob o rito dos repetitivos impede que decisões conflitantes sejam proferidas por juízos e tribunais locais, além de reduzir o volume de recursos ao STJ.
Adicionalmente, o posicionamento é pragmático, pois transfere ao devedor, parte mais apta a comprovar a atividade no imóvel, a responsabilidade pela produção dessa prova. Na prática, cria-se um incentivo para que o agricultor mantenha documentação regular sobre sua atividade rural.
Reflexos para o agronegócio e o crédito rural
A nova tese tem impactos diretos no agronegócio e nas operações de crédito rural. Cooperativas, bancos e agentes financeiros agora operam sob um cenário de maior previsibilidade para execução de garantias, especialmente em regiões onde pequenas propriedades são dadas em garantia.
Importante frisar que a Corte manteve a proteção da impenhorabilidade mesmo quando o bem é oferecido em garantia hipotecária, conforme destaca a jurisprudência consolidada no REsp nº 1.913.234/SP. Ou seja, a norma de ordem pública continua a preservar a função social da pequena propriedade, desde que preenchidos os requisitos legais.
Conclusão: uma decisão com DNA estratégico
O julgamento do Tema 1234 pelo STJ não apenas resolve um impasse técnico-jurídico, mas sinaliza uma mudança de paradigma para a advocacia e o mercado de crédito rural. A tese fixada se desdobra em um instrumento de estabilidade para o fluxo do crédito e reforça a distinção entre a proteção da moradia urbana e da subsistência rural.
Para os profissionais do Direito, a mensagem é clara: a partir de agora, a análise probatória em execuções envolvendo pequenas propriedades rurais deve ser feita com redobrada atenção, sempre com foco nos documentos que comprovem a exploração familiar do imóvel.
Se você atua com Direito Agrário, Processual ou Bancário, ou simplesmente se interessa por temas relevantes para o mundo jurídico e o agronegócio, esse precedente deve estar no seu radar.
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