Tema 952 do STF: Liberdade Religiosa e Direito à Saúde

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No julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 979.742/AM, o Supremo Tribunal Federal (STF) firmou importante precedente ao analisar a colisão entre o direito à saúde e a liberdade religiosa, especialmente no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS). O cerne da discussão era se Testemunhas de Jeová, ao recusarem transfusão de sangue por razões de fé, teriam direito ao custeio de tratamento alternativo fora do seu domicílio. A Corte reconheceu a repercussão geral da matéria e fixou a tese no Tema 952.

1. A tese firmada pelo STF

O Supremo fixou, por maioria, a seguinte tese no Tema 952:

“1. Testemunhas de Jeová, quando maiores e capazes, têm o direito de recusar procedimento médico que envolva transfusão de sangue, com base na autonomia individual e na liberdade religiosa. 2. Como consequência, em respeito ao direito à vida e à saúde, fazem jus aos procedimentos alternativos disponíveis no Sistema Único de Saúde – SUS, podendo, se necessário, recorrer a tratamento fora de seu domicílio.” (RE 979.742/AM, Rel. Min. Luís Roberto Barroso)

2. Liberdade religiosa e recusa de tratamento

O STF afirmou que a recusa à transfusão de sangue por Testemunhas de Jeová constitui expressão legítima de sua liberdade religiosa, garantida pelo art. 5º, VI, da Constituição Federal. A Corte reconheceu que a autonomia individual deve ser respeitada mesmo em situações que envolvam risco de vida:

“Partindo dos direitos fundamentais elencados, entendo que deve ser reconhecido o direito dos pacientes adultos e capazes de tomarem suas próprias decisões médicas, de modo que todo e qualquer tratamento médico que afeta a sua substância corporal deve ser precedido de consentimento livre e esclarecido.”

3. Direito ao tratamento alternativo no SUS

A consequência prática do reconhecimento da liberdade de recusa foi a garantia, pelo STF, de acesso a tratamentos alternativos que estejam disponíveis na estrutura do SUS:

 “Tal entendimento aplica-se à situação sob julgamento. Em razão de sua crença religiosa, as Testemunhas de Jeová têm dificuldades de obter um nível adequado de saúde junto ao sistema público, que ainda adota a transfusão de sangue como método prioritário de tratamento para certas intercorrências. Embora os protocolos de saúde adotados sejam destinados a todos indistintamente, eles produzem impacto desproporcional sobre aqueles que professam tal religião, especialmente se dependem do sistema público. Nesse contexto, cabe ao Estado promover uma acomodação razoável, que compatibilize o direito à saúde e à liberdade religiosa.”

A Corte, portanto, não impôs ao Estado o dever de custear qualquer tratamento à escolha do paciente, mas limitou o dever à oferta de alternativas efetivamente disponíveis no SUS.

4. Tratamento fora do domicílio: quando é possível?

Outro ponto importante foi a análise da possibilidade de tratamento fora do domicílio do paciente. O STF entendeu que, quando inexistente a alternativa terapêutica no município de origem, o deslocamento para unidade fora do domicílio é compatível com o modelo de organização do SUS:

A inexistência de recurso terapêutico local pode justificar o custeio de tratamento em unidade de referência localizada em outro estado.

Contudo, essa autorização está condicionada à regulação sanitária e aos protocolos técnicos:

O deslocamento deve observar as diretrizes estabelecidas pelo SUS, inclusive quanto ao referenciamento assistencial.”

5. Fundamentos constitucionais

A decisão foi fundamentada nos seguintes princípios constitucionais:

  • Liberdade religiosa (art. 5º, VI)

  • Autonomia da vontade (art. 1º, III – dignidade da pessoa humana)

  • Direito à saúde (art. 6º e 196)

  • Organização do SUS e suas diretrizes técnicas (art. 198)

O voto do relator enfatizou:

A dignidade humana e o princípio da igualdade impõem ao Estado a promoção de adaptação razoável sempre que medidas gerais produzirem impacto desproporcional sobre determinados grupos em virtude de características comuns aos seus membros (e.g., deficiência, gênero, idade, raça, cultura, religião). Em situações como essa, cabe ao poder público adotar medidas de acomodação em políticas úblicas, regras ou práticas para mitigar o impacto desproporcional por ela gerado no momento da sua aplicação. Trata-se de dever previsto na Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência[15], que foi ratificada pelo Brasil e internalizada com status constitucional, na forma do art. 5º, § 3º, da Carta de 1988.”

6. Aplicações práticas da tese

A tese fixada no Tema 952 tem impacto direto em diversas situações clínicas e judiciais:

  • Pacientes que recusam transfusões por motivo de fé

  • Requisições administrativas ou judiciais para tratamento alternativo

  • Necessidade de deslocamento para hospital de referência

  • Compatibilidade entre autonomia individual e planejamento do SUS

A decisão do STF estabelece que a liberdade religiosa não pode ser desprezada, mas também não pode servir como justificativa para imposição de dever estatal de custeio irrestrito, fora das normas técnicas.

7. Doutrina sobre autonomia e saúde pública

Cristiano Chaves aponta que:

“O respeito à autonomia do paciente é pilar ético e jurídico do tratamento médico, especialmente quando amparado por convicção religiosa idônea.” (Curso de Direito Civil – Parte Geral, 2024)

Maria Sylvia Di Pietro esclarece:

“A prestação estatal em matéria de saúde deve observar critérios de legalidade, razoabilidade e organização do sistema público, não se confundindo com um cheque em branco ao particular.” (Direito Administrativo, 2023)

Conclusão

O julgamento do Tema 952 é paradigmático ao assegurar o direito do paciente Testemunha de Jeová de recusar transfusão de sangue, desde que seja maior e capaz, com fundamento na liberdade religiosa e na autonomia individual. Ao mesmo tempo, delimita os contornos do dever estatal de custeio, condicionando-o à disponibilidade do tratamento no SUS e, quando necessário, à possibilidade de deslocamento para local onde o serviço seja oferecido.

Com isso, o STF reforça o equilíbrio entre direitos fundamentais e gestão responsável das políticas públicas de saúde.

Para mais informações sobre o julgado, acesse aqui.

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Veja também sobre o Tema 1069 do STF – Direito de Recusa à Transfusão de Sangue.

 

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