Você já imaginou um animal figurando como autor em uma ação judicial?
Pois é, essa ideia que antes parecia distante do mundo jurídico, hoje se materializa em julgados e decisões emblemáticas no Brasil e em diversos países. A pauta vai muito além da proteção ambiental ou da tutela indireta. O que está em debate é: animais podem ser autores de ações judiciais?
E a resposta surpreende até mesmo os profissionais mais experientes do Direito.
Introdução
De maneira geral, no sistema jurídico brasileiro, animais não possuem personalidade jurídica, o que os impede de figurar formalmente no polo ativo ou passivo de uma ação judicial como partes processuais.
A personalidade jurídica, conforme o artigo 1º do Código Civil, é atributo exclusivo de pessoas naturais e jurídicas, ou seja, seres humanos e entidades reconhecidas legalmente. Embora haja um movimento crescente para o reconhecimento dos direitos dos animais, especialmente no âmbito do direito ambiental e do direito dos animais, eles ainda não possuem capacidade processual.
O que existe, na prática atual, é a tutela jurídica dos interesses dos animais por meio de associações, ONGs, Ministério Público ou indivíduos que os representem judicialmente. Por exemplo:
O Ministério Público pode propor ação civil pública para proteção do meio ambiente ou para garantir o bem-estar animal.
Uma ONG de proteção animal pode pleitear medidas para salvaguardar os direitos de animais maltratados.
Portanto, embora os animais sejam sujeitos de tutela jurídica e tenham sua proteção assegurada por normas constitucionais e infraconstitucionais (como a Lei de Crimes Ambientais – Lei nº 9.605/1998), eles não são sujeitos processuais com capacidade para figurar diretamente em ações judiciais.
Há, no entanto, debates acadêmicos e propostas legislativas buscando ampliar a proteção jurídica dos animais, como o reconhecimento da sua natureza de “seres sencientes” pela Emenda Constitucional nº 96/2017, mas isso ainda não lhes confere personalidade jurídica plena.
Doutrina – Animais como Autores
A doutrina moderna no Brasil e em sistemas europeus tem caminhado para reconhecer os animais como seres sencientes, ainda que sem lhes atribuir personalidade jurídica plena. Veja os principais pontos da doutrina atual sobre o tema:
1. Seres sencientes e a doutrina brasileira
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald destacam que, no Direito Civil brasileiro, os animais são tradicionalmente classificados como “objetos” da relação jurídica. Contudo, essa concepção está em transformação com a adoção do conceito de seres sencientes. O novo paradigma, inspirado em sistemas como o alemão e o da República Tcheca, abandona a visão dos animais como simples coisas e os coloca em uma categoria intermediária entre sujeito e objeto, reconhecendo-lhes direitos fundamentais ao bem-estar e à proteção contra crueldade.
2. Personalidade jurídica ambiental e a função protetiva
O Código Civil brasileiro não confere personalidade jurídica aos animais, mas reconhece sua tutela especial no âmbito do direito ambiental. O art. 225 da Constituição Federal consagra o dever do Estado de proteger a fauna contra práticas que a submetam à crueldade. Isso tem sido interpretado como um reconhecimento indireto da personalidade jurídica ambiental dos animais, ou seja, uma proteção jurídica fundada na dignidade ecológica e na defesa da biodiversidade.
3. Proibição de crueldade como direito fundamental dos animais
Pedro Lenza, ao abordar o art. 225, §1º, VII, da Constituição, afirma que se consolidou o entendimento do STF e da doutrina de que os animais gozam de um status de titulares de direitos fundamentais à proteção contra maus-tratos, com base na tutela do meio ambiente e na dignidade animal.
4. Tutela sucessória indireta
No campo do direito sucessório, Cristiano Chaves de Farias aponta que, embora animais não possam receber herança ou legado diretamente, é possível instituir encargos testamentários destinados ao cuidado e à manutenção de animais, criando obrigações patrimoniais vinculadas a terceiros (como ONGs ou cuidadores) para zelar pelo bem-estar dos animais após a morte do testador.
Conclusão doutrinária
A doutrina brasileira vem caminhando para reconhecer os animais como sujeitos de tutela jurídica diferenciada, com direitos fundamentais próprios, sobretudo ligados à sua dignidade e ao bem-estar animal, ainda que não lhes atribua personalidade jurídica como ocorre com pessoas físicas ou jurídicas.
A jurisprudência brasileira tem evoluído no sentido de reconhecer os animais como sujeitos de direitos, permitindo que figurem como autores em ações judiciais, desde que devidamente representados. Recentemente, em janeiro de 2025, um juiz do Rio Grande do Sul reconheceu essa possibilidade, alinhando-se a precedentes de outros tribunais estaduais.Portal de Periódicos da UnB
Casos Relevantes – Animais como Autores
Tribunal de Justiça do Paraná (2021): No Agravo de Instrumento nº 0059204-56.2020.8.16.0000, a 7ª Câmara Cível reconheceu a capacidade dos cães Rambo e Spike de figurarem no polo ativo da demanda. A decisão destacou que, por serem seres sencientes, os animais possuem capacidade de ser parte (personalidade judiciária), conforme os artigos 5º, XXXV, e 225, §1º, VII, da Constituição Federal, e o art. 2º, §3º, do Decreto-Lei nº 24.645/1934. Portal de Periódicos da UnB
Tribunal de Justiça de Santa Catarina (2024): Em outro caso, a 3ª Câmara de Direito Civil reconheceu a possibilidade de cães serem representados em juízo por seus tutores, especialmente em situações que envolvem sua dignidade e bem-estar. Tribunal de Justiça de Santa Catarina
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (2025): Conforme noticiado, um juiz desse estado reconheceu que animais podem demandar em juízo como autores, reforçando a tendência de atribuir-lhes capacidade processual. Consultor Jurídico
Recentemente, decisões judiciais no Brasil têm reconhecido a capacidade dos animais de figurarem como autores em processos judiciais, desde que devidamente representados. Os magistrados fundamentaram essas decisões nos seguintes pontos principais:
Reconhecimento dos animais como sujeitos de direitos: Os julgados destacam que os animais, por serem seres sencientes, possuem direitos que devem ser protegidos juridicamente.Essa visão está alinhada com o entendimento de que os animais não são meros objetos, mas sujeitos de direitos, conforme previsto em legislações estaduais e federais.
Fundamentação constitucional: As decisões baseiam-se no artigo 225, §1º, VII, da Constituição Federal, que impõe ao poder público e à coletividade o dever de proteger a fauna e a flora, vedando práticas que submetam os animais à crueldade. Esse dispositivo reforça a necessidade de assegurar aos animais uma existência digna, respaldando sua proteção jurídica.
Capacidade de ser parte (personalidade judiciária): Foi reconhecido que os animais, por serem sujeitos de direitos, possuem a capacidade de ser parte em processos judiciais (personalidade judiciária). Essa capacidade permite que os animais busquem a tutela jurisdicional de seus direitos, desde que representados por seus tutores, pelo Ministério Público, por associações de proteção animal ou por outras entidades legalmente habilitadas. Tribunal de Justiça do ParanáPeriódicos UFF
Precedentes nacionais e internacionais: As decisões mencionam precedentes do direito comparado, como casos na Argentina e na Colômbia, onde foi reconhecida a capacidade processual dos animais. Além disso, destacam-se decisões no sistema jurídico brasileiro que reconhecem a possibilidade de os animais constarem no polo ativo das demandas, desde que devidamente representados. Bloguesia
Aplicabilidade do Decreto-Lei nº 24.645/1934: As decisões consideram a vigência do Decreto-Lei nº 24.645/1934, que estabelece medidas de proteção aos animais e prevê, em seu artigo 2º, §3º, que os animais serão assistidos em juízo pelo Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros das sociedades protetoras dos animais. Esse dispositivo legal reforça a possibilidade de representação processual dos animais. Periódicos UFF
Esses fundamentos refletem uma evolução no entendimento jurídico sobre os direitos dos animais, reconhecendo-os como sujeitos de direitos e assegurando-lhes acesso à justiça para a proteção de sua dignidade e bem-estar.
Direito Comparado
No direito comparado, há alguns precedentes emblemáticos em que animais foram reconhecidos como sujeitos de direitos e puderam figurar como parte em processos judiciais, principalmente com base na proteção à dignidade animal e à natureza. Veja os principais casos:
1. Caso da Orangotango Sandra (Argentina)
Tribunal: Câmara de Cassação Penal de Buenos Aires (2014)
Decisão: A orangotango Sandra, mantida no zoológico de Buenos Aires, foi reconhecida como “pessoa não humana” e, com isso, obteve o status jurídico que permitiu à ONG de proteção animal propor um habeas corpus em seu favor. O tribunal entendeu que Sandra não era uma “coisa” e, portanto, merecia direitos básicos à liberdade e ao bem-estar.
Fundamento: A decisão foi inovadora ao aplicar o conceito de “sujeito de direitos” a um animal, com base na dignidade animal e na teoria dos “sujeitos não humanos”.
2. Caso do Urso Chucho (Colômbia)
Tribunal: Corte Suprema de Justiça da Colômbia (2017)
Decisão: Um habeas corpus foi ajuizado em favor do urso Chucho, alegando que ele vivia em condições inadequadas em um zoológico. Embora o recurso tenha sido rejeitado no mérito, a Corte reconheceu o debate sobre a necessidade de evolução das normas para permitir o reconhecimento da dignidade dos animais como sujeitos de direitos fundamentais.
Fundamento: O processo gerou discussões relevantes sobre a necessidade de adaptação do direito colombiano para proteger efetivamente a dignidade dos animais.
3. Caso dos Elefantes Happy e Grumpy (EUA)
Tribunal: Corte de Apelações do Estado de Nova York (2022)
Decisão: A organização Nonhuman Rights Project moveu uma ação para libertar a elefanta Happy do Zoológico do Bronx, alegando que ela tinha direito à liberdade corporal por ser senciente. Apesar da decisão contrária no mérito, a corte reconheceu que a discussão sobre a possibilidade de extensão de direitos a seres não humanos é legítima e relevante.
Fundamento: O processo abordou a aplicação do habeas corpus como ferramenta para proteger a autonomia de animais sencientes, ainda que a maioria dos juízes tenha decidido pela manutenção de Happy no zoológico.
4. Caso dos Macacos Naru e Lucien (França)
Tribunal: Tribunal de Apelação de Toulouse (2023)
Decisão: A Justiça francesa analisou um pedido de uma ONG que solicitava o reconhecimento dos macacos como sujeitos de direitos em processo ambiental relacionado à destruição de seu habitat. A corte reconheceu a legitimidade da ONG de atuar em nome dos macacos com base no Código do Meio Ambiente da França.
Fundamento: Reconhecimento da legitimidade ativa indireta das associações ambientais para defender os interesses dos animais perante o Poder Judiciário.
Conclusão
A evolução jurisprudencial indica uma tendência de reconhecer os animais como sujeitos de direitos, permitindo-lhes figurar como autores em ações judiciais por meio de representantes legais. Essa mudança reflete uma interpretação mais ampla dos direitos fundamentais e do acesso à justiça, alinhada aos princípios constitucionais de proteção ao meio ambiente e à dignidade animal.
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