Introdução
Em tempos de intensa judicialização das relações médico-paciente, a colisão entre o dever do médico de preservar a vida e o direito fundamental à liberdade religiosa tem provocado debates relevantes no Supremo Tribunal Federal. O Tema 1069 da Repercussão Geral, recentemente julgado pelo Plenário, fixou parâmetros claros sobre a recusa de transfusões sanguíneas por Testemunhas de Jeová, reafirmando a centralidade da autonomia privada no âmbito do direito à saúde e à liberdade de crença.
Neste artigo, vamos analisar o desfecho do RE 1.212.272/AL e as implicações doutrinárias e práticas da tese firmada pelo STF, à luz da Constituição e das principais correntes do direito civil e constitucional contemporâneo.
O Tema 1069 da Repercussão Geral: qual a controvérsia?
A controvérsia jurídica que ensejou o RE 1.212.272/AL girou em torno do direito de pacientes adultos e capazes, seguidores das Testemunhas de Jeová, de se submeterem a tratamentos médicos na rede pública sem a obrigatoriedade de consentir com transfusões sanguíneas, contrariando preceitos da própria crença religiosa.
O caso originou-se de decisão da Turma Recursal da Seção Judiciária de Alagoas, que manteve a exigência de assinatura do termo de consentimento para eventual transfusão, ainda que contra a vontade do paciente.
O STF, ao reconhecer a repercussão geral da matéria, tratou de delimitar o alcance dos direitos fundamentais envolvidos, especialmente a liberdade religiosa (art. 5º, VI da CF) e a autodeterminação (art. 1º, III e art. 5º, caput da CF).
Julgamento do STF: principais fundamentos e tese firmada
Tese firmada no Tema 1069
“ “1. É permitido ao paciente, no gozo pleno de sua capacidade civil, a recusa, por motivos religiosos, de submeter-se a tratamento de saúde. A recusa, por razões religiosas, a tratamento de saúde é condicionada à decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente, inclusive, quando veiculada por meio de diretivas antecipadas de vontade. 2. É possível a realização de procedimento médico, disponibilizado a todos pelo sistema público de saúde, com a interdição da realização de transfusão sanguínea ou outra medida excepcional, caso haja viabilidade técnico-científica de sucesso, anuência da equipe médica com a sua realização e decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente.”
”
Trechos centrais do acórdão do Tema 1069
O Ministro Gilmar Mendes, relator, destacou a prevalência da autonomia da vontade sobre a intervenção médica, frisando que o Estado laico deve garantir o exercício da liberdade religiosa:
“ No caso de recusa a tratamento de saúde, desde que não afete terceiros, o que está em jogo é o direito à vida e os direitos à liberdade religiosa e à autodeterminação de um mesmo indivíduo. Vale dizer, os direitos fundamentais em questão são titularizados pela mesma pessoa, o que parece tornar ainda mais razoável deixá-la decidir a respeito.”
O voto reafirma que a atuação do médico, ao respeitar a decisão fundamentada do paciente, não caracteriza omissão dolosa ou negligente, tampouco gera responsabilização civil ou ética:
“ Registro, nesse contexto, que a atuação médica em respeito à legítima opção realizada pelo paciente não pode ser caracterizada, a priori, como uma conduta criminosa, como omissão de socorro. É preciso que se analise, caso a caso, se todos os meios aceitos pelo paciente foram empregados. De igual sorte, adotados todos os mecanismos aceitos pelo paciente, não há que se falar em responsabilidade civil do Estado ou do agente responsável em razão de danos sofridos pela ausência de transfusão de sangue.”
O julgamento foi unânime no sentido de que a liberdade religiosa, quando exercida de maneira plena e consciente, é intransponível mesmo diante do risco iminente de morte.
Análise crítica: o equilíbrio entre liberdade e proteção à vida
O peso da autonomia privada no direito brasileiro
De acordo com Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, a autodeterminação é um dos pilares da teoria contemporânea dos direitos da personalidade, sendo o livre desenvolvimento da personalidade um desdobramento direto da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CF).
Portanto, quando um paciente, em plena capacidade civil, opta pela recusa de tratamento que viole suas convicções religiosas, não cabe ao Estado ou aos médicos impor condutas terapêuticas coercitivas. O STF alinha-se à tradição doutrinária ao afirmar que “não há tutela estatal do corpo físico dissociada da vontade livre do titular desse bem jurídico”.
O contraponto doutrinário
Carlos Roberto Gonçalves adverte que o direito à vida, embora constitucionalmente assegurado, não é absoluto. Na relação médico-paciente, a proteção da vida cede lugar à autodeterminação nos casos de recusa legítima de tratamentos invasivos, como a transfusão de sangue, por motivos de crença.
Ademais, o Código de Ética Médica veda a realização de procedimentos sem o consentimento do paciente, exceto nos casos de incapacidade ou risco para terceiros, o que não se configurou no caso das Testemunhas de Jeová.
O risco da “paternalização” estatal
Autores como Marinoni e Arenhart alertam para os riscos do chamado “paternalismo judicial”, que ignora a capacidade civil e a autodeterminação para impor tratamentos sob o pretexto de tutela da saúde pública.
O STF evitou essa armadilha, reafirmando o compromisso com o pluralismo religioso e a autonomia da vontade como pilares do Estado Democrático de Direito.
Repercussões práticas do Tema 1069: implicações na prática médica e hospitalar
No julgamento do Tema 1069 da Repercussão Geral, o Supremo Tribunal Federal fixou importantes diretrizes constitucionais e operacionais que devem nortear a conduta do Estado e dos profissionais de saúde diante da recusa de transfusão de sangue por pacientes adultos, conscientes e informados, especialmente no contexto das Testemunhas de Jeová.
Abaixo, listo as principais diretrizes determinadas pela Corte:
🧭 1. Direito à recusa de transfusão deve ser respeitado
O STF firmou a tese de que:
“1. É permitido ao paciente, no gozo pleno de sua capacidade civil, a recusa, por motivos religiosos, de submeter-se a tratamento de saúde. A recusa, por razões religiosas, a tratamento de saúde é condicionada à decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente, inclusive, quando veiculada por meio de diretivas antecipadas de vontade. 2. É possível a realização de procedimento médico, disponibilizado a todos pelo sistema público de saúde, com a interdição da realização de transfusão sanguínea ou outra medida excepcional, caso haja viabilidade técnico-científica de sucesso, anuência da equipe médica com a sua realização e decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente.”
📌 Isso significa que o Estado — inclusive seus agentes médicos — não pode impor o tratamento com transfusão de sangue contra a vontade do paciente que recusa o procedimento por convicções religiosas, desde que:
Seja adulto (civilmente capaz);
Esteja consciente e em pleno uso de suas faculdades mentais;
Tenha sido informado sobre os riscos da decisão.
⚖️ 2. Prevalência da autonomia da vontade
O STF reconheceu a autodeterminação como expressão da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CF) e ressaltou que a atuação médica deve se submeter à vontade livre e informada do paciente:
A autodeterminação e a liberdade de crença, quando houver manifestação livre, consciente e informada de pessoa capaz civilmente em sentido contrário à submissão a tratamento, impedem a atuação forçada dos profissionais de saúde, ainda que presente risco iminente de morte do paciente.
🏛️ 3. Laicidade estatal e respeito à liberdade religiosa
A Corte destacou que o Estado laico não pode interferir nas decisões de foro íntimo e espiritual do cidadão. A liberdade religiosa (art. 5º, VI da CF) foi reafirmada como direito fundamental inalienável, inclusive nos momentos de internação hospitalar.
👩⚕️ 4. Garantia da não responsabilização do médico
A decisão também fornece segurança jurídica ao profissional de saúde, que não poderá ser responsabilizado (civil, ética ou penalmente) por respeitar a recusa de transfusão, desde que estejam presentes os requisitos de capacidade, consciência e informação:
“A atuação médica em respeito à legítima opção realizada pelo paciente não pode ser caracterizada, a priori, como uma conduta negligente ou dolosa.”
🏥 5. Obrigação institucional de acolher e respeitar as diretivas antecipadas de vontade
O STF equiparou, na prática, as recusas de tratamento motivadas por crença religiosa às diretivas antecipadas de vontade, enfatizando que os estabelecimentos hospitalares devem respeitá-las, inclusive no SUS.
🚫 6. Limites da decisão: não afeta direitos de terceiros
A decisão não se aplica quando houver impacto sobre a vida de terceiros, como por exemplo:
Gestantes, quando a recusa da transfusão colocar em risco o feto;
Situações de emergência em que o paciente esteja inconsciente e não tenha registrado previamente sua vontade.
Conclusão
O Tema 1069 marca uma inflexão relevante na jurisprudência do STF, consolidando a proteção da liberdade de crença e da autodeterminação em face da proteção estatal da vida. Trata-se de um precedente que reforça a laicidade estatal e o protagonismo do paciente no processo terapêutico, com importantes desdobramentos na prática médica e no direito à saúde.
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