
Fornecimento de Medicamentos pelo SUS: Temas 6 e 1234 do STF, Súmulas Vinculantes 60 e 61
1. Introdução: O cenário da judicialização da saúde e a importância dos Temas 6 e 1234
O fenômeno da judicialização da saúde no Brasil é uma realidade amplamente documentada, caracterizada pelo aumento constante de ações judiciais voltadas ao fornecimento de medicamentos, internações, tratamentos e procedimentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Embora a Constituição Federal, no art. 196, estabeleça que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, o exercício desse direito se depara com desafios de natureza orçamentária, técnica e organizacional. A ampliação de pedidos individuais de fornecimento de medicamentos fora das listas oficiais do SUS impôs pressões significativas sobre o orçamento e o planejamento das políticas públicas.
O Supremo Tribunal Federal (STF), atento a essa realidade, passou a enfrentar o tema com profundidade, buscando um equilíbrio entre o direito individual do paciente e a sustentabilidade do sistema público de saúde. Dois marcos se destacam:
Tema 6 (RE 566.471/RN) – define os critérios para a concessão judicial de medicamentos não incorporados ao SUS.
Tema 1234 (RE 1.366.243/SC) – fixa a competência da Justiça Federal e a legitimidade passiva da União em demandas envolvendo medicamentos registrados na ANVISA, mas não incorporados.
A relevância desses julgamentos é tamanha que o STF também editou as Súmulas Vinculantes 60 e 61, conferindo eficácia vinculante a critérios que, até então, eram aplicados de forma dispersa.
2. Conclusão dos julgamentos e teses fixadas nos Temas 6 e 1234
2.1. Tema 6 – Critérios de excepcionalidade
O Tema 6 foi originado no RE 566.471/RN, no qual o Estado do Rio Grande do Norte recorreu contra decisão que o obrigava a fornecer um medicamento caro, não incorporado à lista do SUS, a paciente que não possuía condições financeiras para adquiri-lo.
Segundo o relatório do STF:
“A ausência de inclusão de medicamento nas listas de dispensação do Sistema Único de Saúde – SUS (RENAME, RESME, REMUME, entre outras) impede, como regra geral, o fornecimento do fármaco por decisão judicial, independentemente do custo.”
Todavia, o Plenário estabeleceu hipóteses excepcionais em que a concessão judicial é possível, desde que o autor comprove cumulativamente seis requisitos:
Negativa administrativa – “negativa de fornecimento do medicamento na via administrativa, nos termos do item ‘4’ do Tema 1.234 da repercussão geral”.
Ilegalidade ou mora da CONITEC – ausência de pedido de incorporação ou demora excessiva na análise.
Inexistência de substituto terapêutico no SUS.
Comprovação científica robusta – eficácia, acurácia, efetividade e segurança respaldadas por “ensaios clínicos randomizados e revisão sistemática ou meta-análise”.
Imprescindibilidade clínica – devidamente fundamentada em laudo médico.
Incapacidade financeira – impossibilidade de custear o medicamento.
A decisão foi acompanhada de advertência procedimental:
“Sob pena de nulidade da decisão judicial, nos termos do artigo 489, §1º, do CPC, o juiz deve analisar a decisão da CONITEC, consultar o NATJUS e notificar órgãos competentes sobre eventual concessão do medicamento.”
2.2. Tema 1234 – Competência e legitimidade passiva da União
O Tema 1234 foi julgado no RE 1.366.243/SC e tratou da definição da competência jurisdicional e da responsabilidade dos entes federativos no custeio de medicamentos registrados na ANVISA, mas não incorporados ao SUS.
A ementa do acórdão estabelece:
“Para fins de fixação de competência, as demandas relativas a medicamentos não incorporados na política pública do SUS, mas com registro na ANVISA, tramitarão perante a Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, da Constituição Federal, quando o valor do tratamento anual específico […] for igual ou superior ao valor de 210 salários mínimos, na forma do art. 292 do CPC.”
O julgamento também resultou na homologação de acordos interfederativos sobre:
Competência.
Custeio e ressarcimento.
Observância do Preço Máximo de Venda ao Governo (PMVG) definido pela CMED.
Nos casos de custo inferior a 210 salários mínimos anuais, prevalece a competência da Justiça Estadual, salvo interesse jurídico da União.
3. Súmulas Vinculantes 60 e 61
A aprovação dos Temas 6 e 1234 foi seguida da edição das Súmulas Vinculantes:
SV 60 – “Nas ações que versem sobre fornecimento de medicamentos registrados na ANVISA, mas não incorporados ao SUS, de valor anual igual ou superior a 210 salários mínimos, a competência é da Justiça Federal e a União deve figurar no polo passivo.”
SV 61 – “A concessão judicial de medicamento não incorporado ao SUS exige o cumprimento cumulativo dos requisitos estabelecidos no Tema 6 da repercussão geral.”
Essas súmulas têm força vinculante, o que significa que todas as instâncias do Judiciário e órgãos administrativos devem observá-las.
4. Acordos Homologados no Tema 1234 – Definições e Critérios Práticos
O julgamento do Tema 1234 foi singular não apenas pela fixação de tese, mas por ter resultado na homologação de acordos interfederativos firmados entre União, Estados, Municípios e órgãos representativos, visando estabelecer um marco procedimental unificado para as demandas de medicamentos não incorporados.
Segundo consta no Manual Explicativo da PGE/MS, os acordos contemplaram, entre outros pontos:
“Acordos interfederativos: análise conjunta com Tema 6. Em 2022, foi reconhecida a repercussão geral da questão relativa à legitimidade passiva da União e à competência da Justiça Federal nas demandas sobre fornecimento de medicamentos não incorporados ao SUS (Tema 1234). Para solução consensual desse tema, foi criada Comissão Especial, composta por entes federativos e entidades envolvidas. Os debates resultaram em acordos sobre competência, custeio e ressarcimento em demandas que envolvam medicamentos não incorporados, entre outros temas. A análise conjunta do presente tema 1234 e do tema 6 é, assim, fundamental para evitar soluções divergentes sobre matérias correlatas. Homologação parcial dos acordos, com observações e condicionantes.”
4.1. Conceitos Utilizados
O documento define de forma técnica os principais conceitos, que são essenciais para compreender a aplicação prática das decisões:
a) Medicamentos não incorporados
“Medicamentos não incorporados: aqueles registrados na ANVISA, mas ausentes das listas do SUS, como a RENAME (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais), RESME e REMUME, não fazendo parte da política pública vigente de assistência farmacêutica.”
b) Medicamentos sem registro na ANVISA
“Medicamentos sem registro na ANVISA: não podem ser fornecidos pelo SUS, salvo hipóteses excepcionais previstas em lei e regulamento, como casos de importação autorizada para uso compassivo ou situações emergenciais.”
c) Medicamentos não incorporados e oncológicos
“Medicamentos não incorporados e oncológicos: sujeitos a protocolos específicos de análise, devendo observar as diretrizes da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS e, quando cabível, as políticas nacionais de atenção oncológica.”
d) Medicamentos incorporados
“Medicamentos incorporados: já constantes das listas oficiais do SUS e cujo fornecimento é obrigação do ente responsável pelo custeio, conforme pactuação na Comissão Intergestores Tripartite (CIT).”
4.2. Critérios de Competência e Custo
A tese fixada pelo STF no Tema 1234 delimitou critérios objetivos para definir a competência jurisdicional e o polo passivo:
“Para fins de fixação de competência, as demandas relativas a medicamentos não incorporados na política pública do SUS, mas com registro na ANVISA, tramitarão perante a Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, da Constituição Federal, quando o valor do tratamento anual específico do fármaco ou do princípio ativo, com base no Preço Máximo de Venda do Governo (PMVG – situado na alíquota zero), divulgado pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED – Lei 10.742/2003), for igual ou superior ao valor de 210 salários mínimos, na forma do art. 292 do CPC.”
E complementa:
“No caso de inexistir valor fixado na lista CMED, considera-se o valor do tratamento anual do medicamento solicitado na demanda, podendo o magistrado, em caso de impugnação pela parte requerida, solicitar auxílio à CMED, na forma do art. 7º da Lei 10.742/2003.”
4.3. Observância ao PMVG/CMED
O PMVG é o parâmetro único e obrigatório para o cálculo do custo do medicamento. O Manual PGE destaca:
“A observância obrigatória do PMVG/CMED visa uniformizar os cálculos de custo, evitando variações de mercado e garantindo que as definições de competência e custeio não sejam afetadas por preços praticados de forma isolada.”
4.4. Modulação de Efeitos
A modulação foi amplamente debatida nos Embargos de Declaração, resultando na aplicação somente para ações ajuizadas após a publicação do acórdão.
Segundo o voto condutor:
“Presença, no entanto, dos requisitos autorizadores da modulação de efeitos, nos termos do art. 27 da Lei 9.868/1999, para assegurar segurança jurídica e preservar situações já consolidadas no tempo.”
4.5. Fluxo Administrativo e Judicial
A Nota Técnica do CAO Saúde reforça a necessidade de um fluxo administrativo antes do acionamento judicial, destacando que:
“Os Entes Federativos, em governança colaborativa com o Poder Judiciário, implementarão uma plataforma nacional que centralize todas as informações relativas às demandas administrativas e judiciais de acesso a fármaco, de fácil consulta e informação pelo cidadão, na qual constarão dados básicos para possibilitar a análise técnica e o acompanhamento de casos.”
5. Tema 6 – Requisitos de Excepcionalidade e Obrigações do Judiciário
O Tema 6 do STF (RE 566.471/RN) consolidou, após mais de uma década de tramitação, parâmetros rigorosos para a concessão judicial de medicamentos não incorporados ao SUS, trazendo critérios objetivos que passam a ser condições necessárias para deferimento de tais pedidos.
Segundo a tese de julgamento fixada pelo Plenário:
1. “A ausência de inclusão de medicamento nas listas de dispensação do Sistema Único de Saúde – SUS (RENAME, RESME, REMUME, entre outras) impede, como regra geral, o fornecimento do fármaco por decisão judicial, independentemente do custo.”
2. “É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento registrado na ANVISA, mas não incorporado às listas de dispensação do SUS, desde que preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos, cujo ônus probatório incumbe ao autor da ação:”
5.1. Os seis requisitos cumulativos
O STF determinou que todos os requisitos devem ser comprovados simultaneamente, sob pena de indeferimento do pedido:
Negativa administrativa
“(a) negativa de fornecimento do medicamento na via administrativa, nos termos do item ‘4’ do Tema 1.234 da repercussão geral;”
Ilegalidade ou mora na decisão da CONITEC
“(b) ilegalidade do ato de não incorporação do medicamento pela Conitec, ausência de pedido de incorporação ou da mora na sua apreciação, tendo em vista os prazos e critérios previstos nos artigos 19-Q e 19-R da Lei nº 8.080/1990 e no Decreto nº 7.646/2011;”
Ausência de substituto terapêutico no SUS
“(c) impossibilidade de substituição por outro medicamento constante das listas do SUS e dos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas;”
Eficácia comprovada por evidências científicas de alto nível
“(d) comprovação, à luz da medicina baseada em evidências, da eficácia, acurácia, efetividade e segurança do fármaco, necessariamente respaldadas por evidências científicas de alto nível, ou seja, unicamente ensaios clínicos randomizados e revisão sistemática ou meta-análise;”
Imprescindibilidade clínica
“(e) imprescindibilidade clínica do tratamento, comprovada mediante laudo médico fundamentado, descrevendo inclusive qual o tratamento já realizado;”
Incapacidade financeira do paciente
“(f) incapacidade financeira de arcar com o custeio do medicamento.”
5.2. Obrigações do juiz na análise
O STF foi explícito ao atribuir deveres procedimentais ao Judiciário para que a análise dessas demandas seja técnica e fundamentada. Conforme consta no voto condutor:
“Sob pena de nulidade da decisão judicial, nos termos do artigo 489, §1º, do CPC, o juiz deve analisar a decisão da CONITEC de não incorporação, consultar o Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NATJUS) ou outros especialistas, e notificar os órgãos responsáveis para que avaliem a possibilidade de incluir o medicamento nas listas do SUS, se o medicamento for concedido.”
Além disso, foi estabelecido que laudos médicos particulares não são suficientes para embasar decisões, sem que haja respaldo em avaliações técnicas independentes:
“Em nenhum caso, o juiz pode decidir apenas com base em laudos médicos apresentados pela pessoa que solicita o medicamento.”
5.3. Fundamentação principiológica da decisão
A Corte justificou a adoção desses critérios a partir de três premissas estruturantes:
Escassez de recursos e eficiência das políticas públicas
“Como os recursos públicos são limitados, é necessário estabelecer políticas e parâmetros aplicáveis a todas as pessoas, sendo inviável ao poder público fornecer todos os medicamentos solicitados. A judicialização excessiva gera grande prejuízo para as políticas públicas de saúde, comprometendo a organização, a eficiência e a sustentabilidade do SUS.”
Igualdade no acesso à saúde
“A concessão de medicamentos por decisão judicial beneficia os litigantes individuais, mas produz efeitos sistêmicos que prejudicam a maioria da população que depende do SUS, de modo a afetar o princípio da universalidade e da igualdade no acesso à saúde.”
Respeito à expertise técnica e à medicina baseada em evidências
“O Poder Judiciário deve ser autocontido e deferente às análises dos órgãos técnicos, como a CONITEC, que possuem expertise para tomar decisões sobre a eficácia, segurança e custo-efetividade de um medicamento.”
6. Quadro Comparativo Expandido – Tema 6 x Tema 1234
Critério Tema 6 – RE 566.471/RN Tema 1234 – RE 1.366.243/SC Objeto Critérios para concessão judicial de medicamentos não incorporados ao SUS. Definição de competência e legitimidade passiva da União em demandas sobre medicamentos registrados na ANVISA, mas não incorporados. Regra Geral Ausência de inclusão nas listas do SUS impede fornecimento judicial. Justiça Federal é competente quando custo anual ≥ 210 salários mínimos, com União no polo passivo. Excepcionalidade Concessão apenas se preenchidos 6 requisitos cumulativos (negativa administrativa, ilegalidade/mora CONITEC, ausência de substituto, eficácia comprovada, imprescindibilidade clínica e incapacidade financeira). Aplicação subsidiária dos requisitos do Tema 6, acrescida da regra de valor para definição de competência. Parâmetro de Custo Não há valor mínimo ou máximo, mas análise deve ser pautada na sustentabilidade das políticas públicas. PMVG/CMED obrigatório para cálculo; se ≥ 210 SM/ano → Justiça Federal; se inferior → Justiça Estadual (salvo interesse jurídico da União). Papel da União Apenas se presentes hipóteses de competência federal. Polo passivo obrigatório nos casos de alto custo. Modulação Aplica-se a processos ajuizados após publicação do acórdão. Idem, garantindo segurança jurídica. Papel do Judiciário Obrigação de consultar NATJUS, avaliar decisão da CONITEC e fundamentar tecnicamente a decisão. Segue os mesmos deveres, com ênfase em observância do fluxo administrativo e custeio pactuado. 7. Implicações Práticas para a Atuação Profissional com os Temas 6 e 1234
7.1. Para advogados
Seleção criteriosa de casos: Antes de propor ação, verificar se todos os requisitos do Tema 6 são atendidos.
Prova documental robusta: Juntar negativa administrativa, laudo médico detalhado e evidências científicas de alto nível.
Cálculo preciso do custo anual: Usar exclusivamente o PMVG/CMED para definir competência e polo passivo.
7.2. Para magistrados
Respeito ao fluxo técnico: Analisar decisão da CONITEC, consultar NATJUS e fundamentar com base em evidências científicas.
Evitar decisões isoladas: Considerar impacto sistêmico e risco de desequilíbrio orçamentário.
Atenção à modulação: Aplicar as regras apenas a ações ajuizadas após a publicação dos acórdãos.
7.3. Para o Ministério Público
Fiscalização das políticas públicas: Verificar se negativas administrativas e indeferimentos da CONITEC seguem critérios legais.
Atuação coletiva: Priorizar ações que resolvam problemas estruturais e não apenas demandas individuais.
Uso da plataforma nacional: Acompanhar dados e padrões de judicialização para orientar a atuação institucional.
8. Conclusão
Os julgamentos dos Temas 6 e 1234 do STF, aliados à edição das Súmulas Vinculantes 60 e 61, inauguram uma nova era na judicialização da saúde no Brasil. Pela primeira vez, o Supremo estabelece critérios objetivos, uniformes e vinculantes para a concessão judicial de medicamentos não incorporados ao SUS, ao mesmo tempo em que organiza a competência jurisdicional e define responsabilidades de custeio.
A partir de agora:
Pacientes e advogados precisam cumprir um checklist jurídico e técnico rigoroso antes de acionar o Judiciário.
Juízes devem pautar suas decisões em dados técnicos e evidências científicas, evitando fundamentações genéricas.
Ministério Público e demais atores do sistema de justiça têm parâmetros claros para orientar sua atuação.
Em termos práticos, essas decisões devem reduzir litígios desnecessários, uniformizar entendimentos e preservar recursos públicos, fortalecendo a governança do SUS.
Para mais informações sobre o julgado, Tema 6 e Tema 1234.
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