
Resumo: O STJ, ao julgar o Tema 1303 dos recursos repetitivos, firmou a tese de que a ausência de confissão durante o inquérito policial não pode ser fundamento para o Ministério Público negar a proposta de Acordo de Não Persecução Penal (ANPP). A seguir, analisamos o conteúdo da decisão, os trechos mais relevantes, o embasamento doutrinário e os impactos práticos para o processo penal brasileiro.
Introdução
O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), introduzido pelo Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019), representa uma inovação relevante no sistema de justiça penal brasileiro, incorporando elementos de justiça negociada e promovendo a racionalização da persecução penal. Ocorre que a prática forense levantou uma controvérsia sensível: a confissão do investigado no inquérito é condição para a oferta do ANPP?
A Terceira Seção do STJ enfrentou essa controvérsia ao afetar a matéria como Tema 1303 dos Recursos Repetitivos, fixando diretrizes obrigatórias para os tribunais do país.
A tese firmada no Tema 1303
A tese firmada foi clara:
1. A confissão pelo investigado na fase de inquérito policial não constitui exigência do art. 28-A do Código de Processo Penal para o cabimento do ANPP, sendo inválida a negativa de formulação da proposta baseada em sua ausência.
2. A formalização da confissão para fins do ANPP pode se dar no momento da assinatura do acordo, perante o próprio órgão ministerial, após a ciência, avaliação e aceitação da proposta pelo beneficiado, devidamente assistido por defesa técnica, dado o caráter negocial do instituto.
A importância da decisão
A decisão proferida pelo STJ vem ao encontro de uma preocupação constitucional e internacional com as garantias do investigado. Entre os fundamentos utilizados estão:
O direito ao silêncio e a não autoincriminação (art. 5º, LXIII, da CF e art. 186 do CPP);
A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica);
A lógica do ANPP como negócio jurídico processual, e não como direito subjetivo do investigado, mas também não como faculdade arbitrária do Ministério Público.
Trechos relevantes da decisão do Tema 1303
1. Sobre o direito ao silêncio
“O direito à não autoincriminação (…) não pode ser interpretado em desfavor do réu (…) a invocação do direito ao silêncio durante a persecução penal não pode impedir a incidência posterior do ANPP.”
2. Sobre a confissão no momento da proposta
“O Código de Processo Penal, em seu art. 28-A, não determinou quando a confissão deve ser colhida, apenas que ela deve ser formal e circunstanciada. Isso pode ser providenciado pelo próprio órgão ministerial.”
3. Sobre o caráter negocial do ANPP
“Trata-se de contribuição de grande valia a combater a nefasta cultura do encarceramento (…) devendo ser estimulada como política pública, a fim de que as sanções sejam obtidas de modo alternativo ao cárcere.”
Doutrina: o que dizem os autores?
Gustavo Badaró (2024)
“Pode ser que o investigado tenha sido ouvido no inquérito policial e tenha negado os fatos. Posteriormente, diante de tratativas com o Ministério Público, opte por reconhecer a autoria delitiva e confesse formal e circunstanciadamente os fatos.” (BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal – Ed. 2024. São Paulo: Revista dos Tribunais)
Rodrigo Leite Cabral
“O fato de o investigado não ter confessado na fase investigatória não quer significar o descabimento do acordo de não persecução penal.” (CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do Acordo de Não Persecução Penal à luz da Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime). Salvador: JusPodivm, 2020)
Ambos os doutrinadores ressaltam que a confissão no ANPP deve ser manifestação de vontade informada e protegida por assistência técnica, jamais uma imposição prematura.
A relação com o art. 28-A do CPP
O artigo 28-A estabelece os requisitos para o ANPP, entre eles:
“Confessar formal e circunstanciadamente a prática da infração penal”.
Contudo, a interpretação do STJ deixou claro que esse requisito não exige que a confissão ocorra na fase inquisitorial, mas sim no momento adequado, quando a proposta for formalmente apresentada, permitindo uma avaliação consciente e assistida por defensor.
A jurisprudência anterior ao Tema 1303
Mesmo antes da afetação do tema, decisões de ambas as Turmas Criminais já caminhavam na mesma direção. Por exemplo:
HC 837.239/RJ: “A formalização da confissão para fins do ANPP diferido deve se dar no momento da assinatura do acordo”;
HC 657.165/RJ: “A exigência de confissão no inquérito viola o direito à não autoincriminação”.
Diálogo com o Tema 1098: o controle judicial da negativa ao ANPP
A análise do Tema 1303 ganha consistência adicional com a interpretação firmada no Tema 1098 dos Recursos Repetitivos do STJ, que afirma:
“É cabível o controle judicial do arquivamento de inquérito ou da recusa de proposta de acordo de não persecução penal, com base no art. 28-A, § 14, do CPP, quando esta se der de forma infundada, arbitrária ou em manifesta desconformidade com os requisitos legais” (REsp 1.887.511/PR).
Essa tese complementa a do Tema 1303 ao deixar claro que o Ministério Público não possui poder absoluto para negar o ANPP: é necessária fundamentação concreta e individualizada. O juiz, por sua vez, exerce papel de controle sobre essa atuação, podendo determinar nova avaliação se a negativa não observar os requisitos legais.
Diálogo entre as teses:
Tema | Conteúdo central | Efeito jurídico |
---|---|---|
1303 | A ausência de confissão no inquérito não autoriza a recusa ao ANPP | Confissão deve ocorrer no momento da aceitação do acordo, com assistência técnica |
1098 | O juiz pode revisar negativa infundada do ANPP pelo MP | Controle judicial da legalidade da atuação do MP no art. 28-A, § 14 do CPP |
Impactos e Expectativas
A decisão proferida no Tema 1303 representa um marco no avanço do processo penal negociado no Brasil. Ao afastar a exigência de confissão prévia como condição para o ANPP, o STJ assegura a plena vigência de garantias constitucionais e internacionais. A convergência com o Tema 1098 fortalece a atuação judicial no controle da legalidade das decisões ministeriais, garantindo que o ANPP seja um instrumento efetivo de justiça restaurativa, e não de coerção indireta ao investigado.
Para mais informações sobre o julgado, acesse aqui.
Veja também o entendimento firmado pelo STJ Tema 1098: ANPP retroativo mesmo após denúncia
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