Introdução
O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), previsto no artigo 28-A do Código de Processo Penal (CPP), trouxe uma relevante inovação no sistema de justiça criminal brasileiro ao permitir a celebração de acordos entre Ministério Público e investigados para evitar o ajuizamento de ações penais. No entanto, sua aplicação retroativa gerou intensos debates nos tribunais superiores, culminando na definição do Tema 1098 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Neste artigo, exploraremos a controvérsia jurídica que envolveu a retroatividade do ANPP, faremos uma análise crítica da jurisprudência consolidada pelo STJ, traremos o posicionamento da doutrina sobre o tema e discutiremos o impacto prático dessa decisão no dia a dia dos operadores do direito.
O que decidiu o STJ no Tema 1098?
O STJ fixou entendimento crucial no julgamento dos Recursos Especiais 1.890.343/SC e 1.890.344/RS, ambos representativos da controvérsia sobre a possibilidade de aplicação do ANPP em processos em andamento, mesmo após o recebimento da denúncia.
A tese firmada pela Terceira Seção foi clara ao afirmar:
“O Acordo de Não Persecução Penal constitui um negócio jurídico processual penal instituído por norma que possui natureza processual e material. Por isso, aplica-se o princípio da retroatividade da norma penal benéfica (art. 5º, XL, da CF), permitindo a celebração do ANPP em processos em curso quando da entrada em vigor da Lei 13.964/2019, desde que ainda não tenha ocorrido o trânsito em julgado da condenação.”
Essa decisão revogou o entendimento anterior da Corte, que restringia a aplicação do ANPP à fase pré-processual, limitando sua incidência até o recebimento da denúncia.
Trecho marcante da decisão no Tema 1098:
“Nos processos penais em andamento em 18/09/2024 […], nos quais seria cabível em tese o ANPP, mas ele não chegou a ser oferecido pelo Ministério Público ou não houve justificativa idônea para o seu não oferecimento, o Ministério Público, agindo de ofício, a pedido da defesa ou mediante provocação do magistrado da causa, deverá, na primeira oportunidade em que falar nos autos, manifestar-se motivadamente acerca do cabimento ou não do acordo”.
O caso concreto analisado
Nos casos julgados, os réus haviam sido condenados em primeira instância e já se encontravam em fase recursal. Ainda assim, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região determinou o retorno dos autos à primeira instância para a análise da possibilidade de celebração do ANPP, mesmo após a denúncia já ter sido recebida.
O Ministério Público Federal recorreu ao STJ alegando que o acordo deveria ser limitado à fase anterior ao recebimento da denúncia, mas teve o recurso negado.
O ministro Reynaldo Soares da Fonseca destacou que, apesar da natureza processual do acordo, o instituto também possui natureza material ao extinguir a punibilidade do réu, justificando a retroatividade da norma.
Análise doutrinária: natureza híbrida e retroatividade
A doutrina majoritária já vinha se inclinando a reconhecer o caráter híbrido do ANPP. Autores como Aury Lopes Jr. e Eugênio Pacelli apontam que o ANPP, ao mesmo tempo que é um mecanismo processual, interfere diretamente no direito material ao extinguir a punibilidade, devendo, portanto, beneficiar o acusado nos moldes do art. 5º, XL, da CF.
Aury Lopes Jr. afirma:
“Por ser um mecanismo que extingue a punibilidade e interfere na própria pretensão punitiva do Estado, o ANPP deve obedecer ao princípio da retroatividade da norma penal benéfica”.
Pacelli complementa:
“É imprescindível interpretar o artigo 28-A à luz dos princípios constitucionais de ampla defesa e retroatividade da norma mais benéfica ao réu”.
Com isso, a doutrina alinha-se ao entendimento mais moderno do STF e do STJ, que ampliaram a aplicação do ANPP para fases posteriores ao recebimento da denúncia, desde que não haja trânsito em julgado.
Reflexos práticos da decisão
A fixação da tese no Tema 1098 tem impacto imediato em milhares de processos em andamento. Estima-se, segundo dados apresentados pelo STF no julgamento do HC 185.913/DF, que aproximadamente 1,6 milhão de processos podem ser afetados.
Entre as principais consequências práticas destacam-se:
Redução de ações penais em curso: réus que se enquadrem nas condições do ANPP terão oportunidade de encerrar o processo antes de eventual condenação definitiva.
Obrigação de manifestação do MP: em processos em curso após 18/09/2024, o Ministério Público deverá se manifestar de ofício sobre o cabimento do ANPP, inclusive em fase recursal.
Suspensão do processo: uma vez firmado o acordo, a ação penal e o prazo prescricional ficam suspensos até o cumprimento integral das condições estabelecidas.
ANPP e STF: harmonia com o precedente do HC 185.913/DF
O STJ alinhou seu entendimento ao que já fora decidido pelo STF no histórico julgamento do HC 185.913/DF, em setembro de 2024. Na ocasião, a Suprema Corte considerou o ANPP como norma penal benéfica e determinou sua aplicação retroativa a todos os processos sem condenação transitada em julgado.
O STF entendeu que o ANPP, ao impedir a continuidade da ação penal mediante acordo, promove diretamente a proteção do status libertatis do acusado, sendo, portanto, norma de direito material.
Destaque para a tese fixada pelo STF:
“Diante da natureza híbrida da norma, a ela deve se aplicar o princípio da retroatividade da norma penal benéfica”
Comparativo entre doutrina e jurisprudência
A jurisprudência do STJ e STF, ao reconhecer a retroatividade do ANPP, seguiu a mesma linha dos principais doutrinadores. Contudo, há nuances importantes:
Aspecto | Doutrina | Tema 1098 |
---|---|---|
Natureza jurídica do ANPP | Norma híbrida (processual e material) | Norma híbrida (processual e material) |
Aplicação retroativa | Sempre que benéfica ao réu | Sim, desde que não tenha ocorrido trânsito em julgado |
Momento limite para propositura | Antes do trânsito em julgado | Antes do trânsito em julgado |
Confissão formal | Pode ser posterior à denúncia | Exigida na formalização do acordo |
Conclusão
O Tema 1098 do STJ representa uma virada importante no cenário jurídico brasileiro, consolidando o entendimento de que o ANPP pode ser proposto mesmo após o recebimento da denúncia, desde que a condenação não tenha transitado em julgado. Trata-se de uma mudança alinhada aos valores constitucionais de proteção ao réu e à efetividade da retroatividade da norma penal mais benéfica.
Além disso, ao harmonizar seu entendimento com o STF, o STJ contribui para a segurança jurídica e uniformidade da aplicação do direito, facilitando o encerramento célere de processos e a racionalização do sistema penal.
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